domingo, 24 de setembro de 2017

SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?


Raramente me chega às mãos um livro como esse que eu REALMENTE (e eu não estou gritando, apenas tentando ser enfática) gostaria de dizer a toda gente leia, leia, leia! Que eu creio que deveria fazer parte do acervo das bibliotecas, ser indicado nas escolas, discutido nos diversos grupos de leitura espalhados pelo país, e ter sua leitura compartilhada entre amigos leitores. 

Sou uma leitora dada a apaixonar-me por livros esquecidos (foi assim com o A indesejada aposentadoria, de Josué Montello,  com os livros da Barbara Pym, os do Wodehouse e alguns outros,  todos recomendadissímos) e ter ojeriza por superestimados, "corro léguas dos superestimados", mas não me furto a investir parte do meu soldo nos bons livros esquecidos, ou poderia dizer, dos  subestimados. 

Dificilmente vou entender o porque de um livro como esse "Sabe com quem está  falando?" ser tão pouco conhecido.

"Quanto vale um homem?" texto que abre essa maravilhosa seleção de "contos sobre corrupção e poder" já valeria a leitura do livro. Ruffato conseguiu contemplar diversos aspectos do tema através das penas (ou teclas) de Machado de Assis, Artur Azevedo, José Veríssimo, Alberto Rangel, João do Rio, Lima Barreto, Godofredo Rangel, Adelino Magalhães, Graciliano Ramos, Alcântara Machado, Érico Veríssimo, Marques Rebelo, Otto Lara Rezende, Lygia Fagundes Telles,  Marcos Rey, João Ubaldo Ribeiro, Sérgio Sant'Anna, Luiz Vilela, Luiz Antonio de Assis Brasil e  Marçal Aquino.

São contos engenhosos, sagazes e por vezes divertidos. Ri bastante com: "Os pobres liberais", do Artur Azevedo; "O destacamento", de Godofredo Rangel; "Fifinho Autoridade", Adelino Magalhães, "O magnata do voto", do João Ubaldo; o "Más notícias", de Luiz Vilela. A essa altura você já deve estar se perguntando se eu ri com tudo? E eu devo dizer que ri com quase tudo.  Mas não li rapidamente, um ou dois contos por dia, para prolongar o tempo de leitura e valorizar esse trabalho maravilhoso. 

Grifos

"Este é um carro que não chama a atenção. Apenas um carro negro, com vários homens de terno, a percorrer a Avenida dos Revoltosos, que partindo da Praça do Repúdio, vai terminar, depois de vários quilômetros, no Presídio Municipal." 321

"- Olha! Daqui a dias, teremos aí um bom negócio: negócio de carvão! Mais sigilante ainda, em abafada solenidade: - mas muito segredo, heim! Você vai-nos ajudar nisto! Aparece quarta-feira!
(…)
Bom Fifinho! generoso Fifinho, mais ou menos igual aos nossos outros grandes homens, tão beneméritos à custa dos cobres públicos, que os apoteosa!... "(131

"Sem acrescentar palavra, Padre Zoroastro tinha ido lá para falar, não tinha ido para ouvir. Isto é: tinha ido ouvir o sim, só o sim. Enquanto esperava a hora do sim falava para impedir o não."173

"E o Zequinha Silva, presidente da comissão? Desaforo. É preciso arranjar outro presidente, outro tesoureiro: ele. Aí está. Regime novo: gente nova. 
E o cobre com o tesoureiro. " 179

"Com o apoio vivo das nações, assumiu o governo com vagas afirmações  e ameaças nebulosas. Um companheiro da junta, reformado, morreu logo depois. O outro conformou-se e foi, a seu tempo, condecorado com a medalha da Ordem dos Patriotas sem Jaça. Entre interesses e conflitos, os primeiros tempos foram difíceis. Mas acabou fixando algumas opções. Entendido com os oligarcas, jurou desbaratar a oligarquia. Apoiado pelos velhos caciques da política, prometeu renovar as lideranças populares. Firmado no poder pronunciou um discurso histórico. Escrito por um erudito intelectual, acusado de ligações com a direita autoritária, mas de conhecido passado  subversivo como militante da esquerda radical.  Fez poucas alterações no texto, que leu de público com pausa e convicção. Mas conquistar o grande futuro deste pequeno país foi contribuição sua,  que mereceu interpretação no meio político e na imprensa controlada suscitou penetrante exegese.

Aplaudindo a sua intenção de salvar a República e evitar a luta fratricida, a União dos Empresários Livres hipotecou-lhe solidariedade. A Federação Nacional dos Bancos abriu-lhe largo crédito sem prazo fixo. Os sindicatos patronais apoiaram-no. Uns poucos sindicatos operários se encolheram, mas muitos vieram a público,  reverentes, depor sobre a hora densa e grave que a nação  atravessava.  Intimidados, os políticos aguardam os acontecimentos. Muitos açodados, aderiram em nome do povo. E o povo não piou.'(247/8)


Título: Sabe com quem está falando?
Org:  Luiz Ruffato 
Editora:  Língua Geral
Pág: 376
Leitura:  27/08 a 23/09/2017

Sinopse: o escolher para título do livro uma frase que todos já ouvimos - 'Sabe Com Quem Está Falando?' - Luiz Ruffato condensa em poucas palavras aquilo que aparece todos os dias nas notícias, mas também nos aspectos mais cotidianos da vida dos brasileiros, aquilo que passa de geração em geração, encon- trando sempre novas formas e protagonistas. O humor é parte importante desta série de contos, que vai muito além do lugar-comum da corrupção do político que pretende enriquecer e ampliar sua influência. De Graciliano Ramos a Marçal Aquino, passando por Lima Barreto, João do Rio ou João Ubaldo Ribeiro, correndo 150 anos de História, estes relatos mostram a visão particular de cada autor, mas também o contexto social e político, as relações de poder entre militares, dignitários do Estado, jornalistas, cidadãos e desgraçados. O tema pode ser sério, mas este livro consegue, através do talento literário, da perspectiva e do senso de humor dos escritores que nele participam, revelar a comédia que anda sempre associada aos jogos de poder. Faz rir, mas também nos faz refletir.





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